Dito isto, enquanto buscava materiais para me inspirar cada vez mais no espírito old school (fuçando entre mandamentos, manifestos etc.), acabei achando o excelente blog "Beyond The Black Gate", onde o autor, Al, faz um relato incrível sobre Dave Arneson e sua forma de jogar RPG. Ao entrar em contato com Al, perguntando se poderia traduzir seu artigo e publicar aqui, obtive resposta positiva dele, que autorizou a conversão para nosso idioma. Sendo assim trago agora para vocês o texto do "Beyond The Black Gate" (clique aqui para ler o original). Espero que se sintam inspirados assim como eu me senti ao ler a transcrição abaixo (traduzida e parafraseada de forma livre):
POR AL - Não preciso olhar muito além das minhas experiências com Dave Arneson para apontar o que seria um modelo perfeito de juiz imparcial. Mas, como muitos dos comentários do artigo acima mostraram, imparcialidade pode acabar sendo associada à mentalidade mestre vs. jogador. Eu provavelmente também já fiz esse tipo de associação no passado, mas jogar com Dave extinguiu qualquer resquício desse tipo de pensamento.
Estar pela primeira vez num jogo mestrado por Dave pode ser um pouco desorientador para qualquer um (como foi para mim). Quando os personagens interagem com o mundo, ele se mostra extremamente animado, aspergindo cada gota de sua personalidade para fazer o jogo se tornar orgânico, vivo; mas, fora disso, ele se mostra distante e até mesmo desligado. Explico: se você, em jogo, se interessou em conversar com um dos guardas élficos que vigiam a ponte para o Castelo Blackmoor, Dave entra completamente no personagem, a ponto de fazer você sentir o cheiro da maresia vinda da baía localizada atrás do castelo. Entretanto, se os jogadores estão discutindo entre si qual seria a melhor maneira de atravessar Loch Gloomen, Dave não demonstra absolutamente nenhuma reação, não importa o que esteja acontecendo. Ele fica sentado, com uma expressão petrificada, não reagindo a nada que estejam dizendo. E se alguém lhe pergunta algo se dirigindo a ele como Mestre e não como NPC, ele simplesmente dá de ombros, fitando o jogador com uma cara de quem diz “jogue”.
Se você já teve a oportunidade de assistir a uma audiência (uma audiência de verdade, não aquelas dos seriados), você provavelmente já está familiarizado com esse mesmo tipo de comportamento – do juiz.
Dizer que Dave “mestrava como um juiz (de Direito)” talvez descrevesse melhor a forma como ele conduzia seus jogos do que dizer que ele “mestrava como um árbitro”. É a real diferença entre (i) usar estritamente as regras e (ii) dar decisões a partir do uso do bom senso e da adjudicação (N.T.: a famosa “rulings over rules” ou “rules vs. rulings”) – e com certeza Dave estava na turma do bom senso e adjudicação. Se você tivesse a oportunidade de se sentar em uma das mesas dele em uma convenção de RPG assim como eu tive, o veria puxando para os jogadores uma pilha de personagens prontos – uma verdadeira confusão de fichas de versões e edições diferentes. Numa mesma sessão em que eu recebi um Clérigo 8º do D&D 3.0, um camarada ao meu lado recebeu o que eu tenho quase certeza absoluta de ter sido um Ranger do OD&D. E quando um jogador, confuso com tudo aquilo, perguntou a ele em qual edição nós jogaríamos, Dave sorriu, estendeu a mão para um aperto e disse “Olá, sou Dave Arneson.”
Essa sessão aconteceu em 2002, alguns anos após o início da intensificação nas regras do D20. Foi interessante ver jogadores “advogados de regras”, ou muito preocupados com os atributos dos personagens, interagirem com um Mestre que literalmente cagava e andava para testes opostos de agarrar ou o que um monstro em particular supostamente poderia ou não fazer. Dave tinha exatamente duas formas de resolver dilemas ou desafios: 1) usar o bom senso para tomar uma decisão absolutamente imparcial; ou 2) rolar o dado caso isso não fosse possível.
Às vezes ele ia além disso. Uma vez, quando a canoa dos jogadores foi atacada por uma horda de homens-lagartos, ele resolveu nos contar quantos inimigos íamos enfrentar, quais eram suas classes de armaduras, quantos eram seus pontos de vida, qual número eles precisavam tirar para nos acertar e mais um monte de coisas. “Eles são estúpidos”, ele disse, “e por serem fanáticos, vão lutar até a morte”. Ou seja, ele tinha acabado de nos afirmar que estávamos numa enrascada do caramba, revelando informações que nenhum mestre ousaria revelar. E enquanto digeríamos isso, ele saiu para pegar um refrigerante, nos deixando todos desbundados. Alguns riram surpresos da audácia dele (incluindo eu), e outros procuraram ao redor por câmeras escondidas, esperando pelo momento em que ele diria que tudo não passava de uma brincadeira (o que não aconteceu).
Mas dizer que, por ser completamente imparcial com relação ao jogo, Dave também era completamente imparcial no que dizia respeito aos jogadores não é verdade. Às vezes, isso até resultava em situações engraçadas. Para se ter uma idéia, uma vez enquanto o grupo era atacado por uma espécie de máquinas voadoras nos pântanos perto do Templo do Sapo (Temple of the Frog) um jogador não parava de reclamar dizendo que não tinha nada para fazer, que não era justo etc., tudo porque seu personagem estava paralisado enquanto que só os outros jogadores lutavam com os monstros. Dave então o olhou por alguns segundos e lhe deu um d6, dizendo “aqui, role isso a cada rodada”. O jogador não entendeu nada e perguntou o porquê. “Isso”, completou Dave, “é o quanto de dano você vai tomar a cada round. Provavelmente vai te deixar ocupado.” Foi inacreditável a forma como mais ninguém reclamou sobre nada até o final da sessão.
Não demorava muito para os jogadores percebessem que nos jogos do Dave nós estávamos sempre sozinhos e por nossa própria conta; sempre. Não haviam dicas – sutis ou não –; não haviam pistas aparecendo repentinamente em nossos caminhos quando saíamos da trilha, nem piedade diante das adversidades. Não haviam venenos mais "fracos" ou "falsificados" quando falhávamos nas jogadas de proteção. Cabia a nós mesmos procurar, patrulhar, estudar, colher dados, preparar, planejar e reagir, tudo com competência. Caso contrário, personagens morriam ou nós éramos informados que simplesmente falhamos em nossa missão e, portanto, a sessão estava encerrada – mais sorte na próxima. Vencer ou perder era nossa responsabilidade, nunca uma esmola ou uma punição (respectivamente). Nunca se tratou de “mestre vs. jogadores”, nem mestre trabalhando para os jogadores. Dave estava lá para fazer um mundo vivo para nós o explorarmos, e também para se certificar de que estávamos engajados com o jogo, se estávamos nos divertindo e, o mais importante, se estávamos sendo realmente desafiados. E isso ele fazia de forma magnânima, de forma que, quando vencíamos, ficávamos orgulhosos de nós mesmos.
Imparcialidade dessa magnitude foi algo que eu praticamente esqueci alguns anos depois. Por um lado porque eu me mudei do bairro onde Dave morava. E por outro porque eu acabei por me juntar a uma campanha bem longa de D&D 3x, de formq eu não me preocupei muito com os “métodos antigos” por um longo tempo. Mas recentemente tenho mestrado edições mais antigas, e também seus clones, de duas em duas semanas, de modo que tenho passado bastante tempo revirando minhas memórias, lembrando de como as coisas eram feitas por um dos criadores do jogo (Dave), para poder resgatar, assim, um pouco daquela magia de antigamente.
Pode parecer babaquice, mas acabei de descobrir que eu mestro exatamente como o Dave fazia. O.o
ResponderExcluirInteressante, CR! Estilo semelhante ao Tim Kask e ao do Jim Ward. Acredito, então, que era algo não tão raro antigamente.
ResponderExcluirEstes mestres acabavam com fama de "killer DM", quando na verdade, eram os jogadores que matavam os personagens ;)
Auhauha é verdade. Como o próprio Jim diria: "James M. Ward doesn't kill characters, players kill characters."
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